Inovar-Auto: ineficaz, caro e regressivo
Valor Econômico - Pedro Ferreira e Renato Fragelli - 20/12/2017
Sob qualquer ponto de vista que se olhe, o programa Inovar-Auto foi um fracasso retumbante. Não conseguiu gerar inovações relevantes no setor. Não aumentou as exportações setoriais. Gerou um enorme excesso de capacidade instalada. Ao invés de estimular a especialização em modelos com grande demanda doméstica e potencial de crescimento, levou à produção disseminada das mais variadas categorias e modelos de veículos, alguns desses com demanda ridícula e claramente não sustentável. Transferiu em média R$ 1,5 bilhão para a indústria automobilística com contrapartidas frouxas. Além disso, foi considerado ilegal pela OMC. Apesar do fiasco, o Mdic e o setor automobilístico insistem em brigar por sua permanência, já possuindo um projeto quase idêntico - o Rota 2030 - para substituí-lo. O Inovar-Auto foi criado em 2012, com validade para o período 2013-2017. A motivação imediata foi o temor da concorrência chinesa e coreana no segmento de automóveis populares, que começavam a entrar agressivamente no mercado nacional. Ante o "perigo" da concorrência de importados mais baratos, o setor conseguiu convencer o governo Dilma a promover (mais) uma política protecionista. A tarifa de importação de veículos já era altíssima - 35% -, o máximo permitido pelos acordos internacionais de que o país era signatário. O Inovar-Auto elevou a proteção para 65%, mas somente sobre veículos importados por empresas sem fábricas locais; enquanto os veículos importados por montadoras com fábricas instaladas no Brasil continuavam com tarifa de importação de 35%. Essa tarifa discriminatória feria claramente as regras da OMC, tendo sido adotada à revelia do Itamaraty. Não surpreende que tenha sido condenada naquele fórum internacional. Em que pese a inclusão de metas de P&D, incentivos à inovação e à eficiência energética, o essencial do programa consistia na tarifa adicional sobre as importações de montadoras que não produzissem localmente, bem como generosos subsídios às montadoras. O programa foi uma vitória do lobby automotivo sobre os interesses dos demais brasileiros. Essa não parece ser a opinião dos envolvidos que em sua defesa repetem platitudes - "seria impensável o Brasil não ter uma política para o setor", segundo um alto burocrata do Mdic - sem, contudo, apresentar qualquer avaliação mais séria do programa. É verdade que houve um aumento do investimento no setor, o que ocorreu para que empresas que só importavam evitassem pagar a tarifa adicional, abrindo novas fábricas no Brasil. Mas "aumentar o investimento" não é um bem em si, pois esses recursos poderiam ter sido utilizados em usos alternativos e os trabalhadores empregados em outros setores. Além disso, o excesso de capacidade gerado por esses investimentos é hoje claramente um problema. A implantação de novas fábricas não é também necessariamente positiva: a Mercedes produziu em 2016 somente 3 mil veículos, quando a escala ótima de uma fábrica de automóveis é pelo menos vinte vezes essa quantidade. Dada a incapacidade de exportação para mercados mais desenvolvidos e o continuado pavor da competição dos importados, não parece ter havido grande inovação no período. Pior, com o aumento da capacidade a competição doméstica aumentou, enquanto a demanda por veículos caiu, o que elevou o custo unitário. Some-se a isso os altos subsídios - um custo para sociedade como um todo - e os preços elevados devido à maior proteção tarifária. Assim, a pouca evidência indireta disponível é que o efeito final do programa foi muito negativo. O Inovar-Auto partiu de uma concepção extremamente atrasada, bem como de um surpreendente desconhecimento de princípios básicos de comércio internacional e do funcionamento da economia mundial. Os burocratas responsáveis pelo programa têm na cabeça um modelo autárquico em que todas as etapas da produção se dão domesticamente e onde todos os tipos de veículos são produzidos localmente. A consequência dessa estratégia é uma baixa escala de produção em cada um dos modelos produzidos, o que gera elevados custos unitários. O desdobramento dessa miopia foi o alijamento do Brasil de cadeias produtivas globais e a estagnação dos fluxos de comércio. Os grandes - e os novos - players do comércio mundial se especializam em etapas do processo produtivo em que possuem vantagens competitivas e importam os demais componentes. Assim, um país pode ser um grande fornecedor de parte desses componentes, e se especializar em modelos populares, enquanto outro será o "rei" do design e serviços, enquanto um terceiro se especializará em modelos de luxo e componentes de alta tecnologia. Os ganhos produtivos dessa forma de organização para cada país são imensos. Foi nesse formato que o comércio mundial nas duas últimas décadas se expandiu aceleradamente. O Brasil, ao organizar sua indústria aeronáutica adotou essa estratégia, tendo como consequência que inúmeras empresas de transporte aéreo internacionais voam hoje em aviões da Embraer.
Na indústria automobilística, em contraste, o país continuou imaginando que ser uma ilha isolada era a melhor alternativa. O Rota 2030 parece repetir os mesmos erros do Inovar-Auto, ao se buscar implantar localmente todas as etapas produtivas mediante proteção generalizada ao setor. Tenta-se acertar repetindo o que não deu certo. Não se trata aqui de diferentes concepções de política setorial e de um debate ideológico entre desenvolvimentistas e liberais. Trata-se de discutir porque insistir em uma política que fracassou. Que a Anfavea e as montadoras defendam agressivamente a continuidade da proteção, bem como dos altíssimos subsídios, é facilmente compreensível: foram eles quem mais ganharam com essas políticas. O que é difícil entender é por que o Mdic luta tão tenazmente por esses mesmos interesses sem apresentar qualquer evidência convincente que essas políticas funcionam e que o efeito líquido para a sociedade é positivo.